IHU 2008

A fé deve ajudar a superarmos a ilusão da razão política como razão que entende o drama humano’. (31.01.2008)

IHU ON-LINE (Revista do Instituto Humanitas Unisinos, Entrevista)

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O jejum de Dom Cappio ampliou, além do debate acerca das obras de transposição do Rio São Francisco e das prioridades do governo Lula, a discussão em torno da relação entre fé e política. “No contexto da teologia latino-americana, esse modo ‘rebelde’ de agir está esgotado e tende a receber uma certa desconfiança dos setores não diretamente alinhados com o cristianismo político das últimas décadas”, afirmou o filósofo Luiz Felipe Pondé em entrevista à IHU On-Line, realizada por e-mail. Para Pondé, que falou sobre as questões políticas mais divergentes na conjuntura atual e a influência e relação dessa ciência com a fé, “a fé deve ajudar a superarmos a ilusão da razão política como razão que entende o drama humano”.


IHU – O problema do conservadorismo é a modernidade?

LUIZ FELIPE PONDÉ – Conservadorismo significa, sem dúvida nenhuma, uma desconfiança enorme em relação à modernidade, compreendida como a crença na razão como instrumento suficiente para o conhecimento. “Conservador” é um termo que não é claro. Mas é razoavelmente correto você pensar que o termo indica desconfiança e mal-estar com relação à suficiência da razão, desconfiança com a idéia de que você possa jogar fora a tradição religiosa, contrariedade à idéia de ruptura -de que o ser humano possa inventar tudo a partir de hoje-, e está também na idéia de que a natureza humana é alguma coisa da qual você deve se aproximar com cuidado e que sempre subentende um certo mistério.

IHU – A greve de fome de Dom Cappio pode ser considerada um ato de fé, mesmo que envolvendo questões políticas? Como o senhor percebe essa relação entre fé e política, na conjuntura atual?

PONDÉ – Claro que pode ser um ato de fé. Acredito, todavia, que, no contexto da teologia latino-americana, esse modo “rebelde” de agir está esgotado e tende a receber uma certa desconfiança dos setores não diretamente alinhados com o cristianismo político das últimas décadas. O erro do cristão político é se meter num ramo que não domina. Faz parte da estrutura da prática política ferramentas que ferem conceitos centrais do cristianismo, como, por exemplo, a leitura da história como instrumento imanente de salvação.

IHU – O que a atitude de Dom Cappio, referente à transposição do Rio São Francisco, pode ensinar aos cristãos e políticos?

PONDÉ – Aos políticos não-cristãos, ensina que devem ficar atentos ao clero político; aos cristãos, que uma atitude que pode ser em si um ato de fé pode estar excessivamente tomada por um traço de excessos hermenêuticos da teologia latino-americana. Acredito que a politização do cristianismo ajuda a encerra o cristianismo na sua forma antiga. E mais: esse assunto (o rio) transcende o tema político e religioso e toca o técnico. A meu ver, a teologia deveria se ocupar mais da alma e da transcendência e menos da “Secretaria de Obras Fluviais”.

IHU – Que aspectos éticos e políticos envolvem o projeto de transposição do Rio São Francisco?

PONDÉ – Não sou capacitado tecnicamente para discutir isso. Como nordestino (pernambucano e tendo também residido na Bahia por metade da minha vida), tendo a achar que seguramente existem fatores nesse processo que ferem a população mais ribeirinha. Todavia, o difícil é a associação duvidosa entre as soluções modernas para a vida (coisa que o cristianismo políticos assumiu e assume) e a tentativa, quase já derrotada, de achar que os capitalistas e indústrias não sabem o que estão fazendo. Sabemos, entre nós nordestinos, que muitas vezes a casa-grande e senzala não ficaram muito diferentes quando “rebeldes” tomaram o poder, ficamos apenas com casas e senzalas mal feitas. Isso em nada quer dizer que não existam dificuldades no processo de mais controle ainda da vida econômica pelas elites. Mais difícil é perceber que não temos muito mais do que as elites em termos de competência técnica ou mesmo ética. Penso que o cristianismo deveria evitar fazer política e administração pública.

IHU – O senhor afirma que há compatibilidade entre os discursos de fé e da razão. E entre fé e política pode haver compatibilidade?

PONDÉ – Não com a política no sentido administrativo. Não creio que o cristianismo deva se definir político-institucionalmente. A política é uma técnica, e a razão, uma atividade cognitiva e epistêmica. O cristianismo não necessariamente se perde quando discute ciência, ontologia, moral. A política revolucionária moderna é, em muito, fruto de teologia ruim, desde Rousseau e Marx. Creio que quando pudermos superar a politização da vida será um alívio. Com isso, quero dizer, quando superarmos a esperança política da vida. Em suma, o cristianismo, a meu ver, deve se manter longe das querelas políticas.

IHU – O senhor disse que “a Igreja já está em processo de conscientização dos limites da América Latina” e que “os determinantes políticos podem atrapalhar muito, principalmente quando a Igreja se deixar contaminar por essas manias bobas de direita e esquerda”. O que isso quer dizer? Qual deve ser o posicionamento dos cristãos numa discussão como a da transposição do Rio São Francisco?

PONDÉ – Esquerda e direita são vícios de pensamento diretamente derivados da politização absoluta da vida. Não há solução simples para isso. A vida não tem solução, muito menos fácil. Penso que a Igreja não deva se meter em assuntos administrativos, uma vez que seus quadros “funcionais” não são preparados para isso. O resultado é que a Igreja, devido à ingerência da teologia política, não forma nem bons diretores espirituais nem bons técnicos administrativos.

IHU – Certa vez, o senhor afirmou que “a Teologia da Libertação não é uma caduca inútil”. À luz das divergências suscitadas pelo posicionamento de Dom Cappio com o seu jejum de protesto contra a transposição do Rio São Francisco, precisamente no campo dos que beberam da mesma fonte, a sua impressão se mantém?

PONDÉ – Continuo a achar que a Teologia da Libertação teve e tem sua importância, sua inspiração bíblica correta. A revolta espiritual contra o sofrimento é justa. Acredito que a Teologia da Libertação se perde quando continua lendo outros autores que não aqueles que acreditam apenas na vertente de inspiração jacobina-napoleônica. Os movimentos políticos sociais de inspiração jacobina perderam para a revisão napoleônica da Revolução Francesa. A crença em “movimentos populares” confunde o problema do ser humano, que é essencialmente individual. Não se muda o homem mudando a estrutura político-social. Esse é o erro lógico e prático da Teologia da Libertação na sua face mais política.

IHU – Quais são os desafios para a integração entre fé e política? Esses dois setores ainda podem e devem dialogar?

PONDÉ – A fé deve ajudar a superarmos a ilusão da razão política como razão que entende o drama humano. Não acredito que a fé deva se organizar politicamente no mundo. É um erro hermenêutico que poderá implicar na simples perda do cristianismo. Veja como os compromissos políticos inviabilizam processos psicológicos de base teológica, como a compreensão de que o mal habita a alma e isso não é causado pela classe opressora exterior ao coração humano. O quanto mais rápido superarmos o vício da razão política mais rápido, ao mesmo tempo, superaremos essa mania de não olharmos para nós mesmos. Não creio que isso deveria ser tema-chave do debate teológico porque ele aceita as prerrogativas politizantes. Penso que a teologia deve estar ocupada com coisas comuns. Não há santidade democrática e não é ela que salvará o mundo.

IHU – E na Igreja também há uma crise de fundamentos éticos?

PONDÉ – Sempre há crise ética porque o homem é um ser ferido. Penso que a Igreja e os cristãos deveriam superar a discussão em termos de ética e estudar mais os santos e a categoria de santidade. Ética é importante, mas também é importante o modo como se organiza o problema do mal na razão em Deus (não necessariamente contra Deus). Por sua vez, a santidade é o modo filosófico correto de discutir o bem e o mal no cristianismo. Pensar só em ética é sintoma típico do cristianismo político. Aliás, é a tentativa de, primeiro, ainda com Kant , hoje com Lévinas, insistir em definir o problema do mal como algo superável com boa educação pública.

IHU – Na atual conjuntura brasileira, como o senhor avalia a prática de fé dos cristãos?

PONDÉ – Analiso que as modas teóricas acadêmicas ainda acorrentam uma reflexão teológica menos “esquerda x direita”-dependente. Acredito que, no campo católico, os cristãos tentam se recompor e superar o surto rousseauniano que acometeu a todos nos últimos 300 anos.

IHU – Qual é o papel dos cristãos na construção real e efetiva de uma política democrática?

PONDÉ – Não creio que esse tópico seja essencial. É claro que o é no sentido de não defender formas violentas de organização política. A democracia, no entanto, pode se transformar numa espécie de ídolo. Deve fazer parte da formação de qualquer pessoa culta, hoje, uma compreensão dos limites dela.

IHU – Durante a greve de fome, o governo chamou o bispo de “intransigente”, e Dom Cappio acusou Lula de autoritário. Qual é a sua avaliação desse impasse entre o governo e uma parte da Igreja, representada por Dom Cappio?

PONDÉ – Lula é autoritário, mas não apenas, ou seja, o é também quando assume toda uma gama de políticas que segue as cartilhas das crenças autoritárias. Toda lei pensa que o Estado decide sobre o bem e o mal, querendo nos dar aula de ética em suas instituições, estrangulando instâncias como a família, ajudando a esfarelá-la, quando esta é mais capacitada para a dolorosa experiência moral. E todo Estado que se crê capaz de ensinar valores é autoritário.

IHU – Em sua opinião, qual é a novidade da ação de Dom Cappio no manejo das mediações entre o mundo da fé e o da política?

PONDÉ – Não vejo muita coisa nova. Sua atitude se inscreve na tradição que vai de rebeldes políticos, terroristas presos. Creio que a greve de fome não me parece um instrumento muito correto de realizar a fé que sofre, mas, como eu disse acima, me parece um erro “coerente” na forma de compreensão de mundo que tem sido ensinada teologicamente e filosófico-antropologicamente entre nós.

IHU – A discussão em torno da transposição do Rio São Francisco revela que vivemos uma crise de fundamentos éticos no espaço público?

PONDÉ – O espaço público não pode ser visto como campo da virtude de modo ingênuo. Isso é típico do mito da democracia moderna e ainda vamos sofrer muito até isso passar. A crise é o estado normal dessa condição. Essa condição define mesmo o modo de vermos o mundo. A democracia não irá nos salvar.

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