O rosto da adúltera de Jesus (15.07.2013)

Christ and the woman taken in adultery Giuseppe Nuvolone (segunda metade do século XVII)


Então, Jesus foi abordado por um grupo de pessoas muito preocupadas com a retidão da lei. Traziam consigo uma mulher em prantos que havia sido pega em adultério. Jogada ao chão, ela tremia de medo. O povo pedia para que Jesus fizesse valer a lei: morte da adúltera por apedrejamento.

Isso foi há 2.000 anos, mas ainda hoje, no mesmo Oriente Médio, tem gente que apedreja mulheres e acha (agora, no Egito) que violentá-las nas praças seja um “direito da soberania popular revolucionária”, enquanto se matam, nas mesmas praças, pelo modo ocidental de vida ou por outra forma de lei (o fundamentalismo islamita).

E assim caminha a humanidade, em ciclos, para lugar nenhum, mas com festas e crenças diferentes no meio, e demagogos a cantar…

Mas voltemos a Jesus. Fatos como esses me fazem achar que Jesus era um cabra macho. Enfrentar o povo quando este se julga movido pelo correto modo de viver é algo que exige, como dizem los hermanos, “cojones”. Jesus disse que quem estivesse livre de pecado que atirasse a primeira pedra. Todos foram embora.

Esta é uma das passagens típicas do mundo bíblico na qual fica claro o tema da hipocrisia como motivação profunda daqueles que se acham arautos do bem, moral ou político.

Mas Jesus era um filósofo hebreu e estes filósofos eram diferentes dos filósofos gregos. O mundo bíblico é diferente da filosofia grega. Naquele, o “regime da verdade” (ou modo de busca da verdade) é interno e moral, na filosofia grega é externo e político.

O problema de saber se o que eu digo é verdade ou não, quando falo ou argumento, inexiste na Bíblia, porque o personagem principal do diálogo é Deus, e Ele sempre sabe de tudo, não há como mentir para Ele como há como mentir para outro homem ou para assembleia “soberana”, como na filosofia ou democracia gregas. Segundo o crítico George Steiner, o Deus de Israel irrita porque está em toda parte e sabe de tudo.

Sabe-se que o advento da democracia grega levou muita gente a pensar sobre a diferença entre pura retórica, que visa o mero convencimento dos outros numa assembleia (eu acho que a democracia é 90% isso mesmo), e a verdade em si do que se fala.

O problema que nasce daí é a relatividade da verdade, dependendo do ponto de vista de quem fala e de quem ouve. Na Bíblia, o problema é se minto para mim mesmo ou não. Na esfera pública, é o tema da hipocrisia, na privada, o da verdade interior. A Bíblia criou o sujeito e as bases da psicologia profunda.

Na Bíblia, como o poder é sempre de Deus e ele é mais íntimo de mim do que sou de mim mesmo, o problema é como eu enfrento a mim mesmo. A preocupação com a lei é sempre acompanhada da atenção para com a falsidade de quem diz ser justo. Por isso foram os hebreus que deram os primeiros passos para a descoberta do espaço interior onde vejo a distância entre mim e a verdade sobre mim mesmo, em vez de me preocupar com a verdade política, sofro com a mentira moral.

O crítico Erich Auerbach, no seu “A Cicatriz de Ulisses“, parte da coletânea “Mímesis“, reconhece este traço do texto hebraico: a relação de atenção e agonia entre Deus e seus eleitos molda o herói bíblico, dando a ele um rosto marcado por uma tensão moral.

Ainda na Bíblia hebraica, o rei David, o preferido de Deus, em seus belos “Salmos”, O encanta justamente porque expõe seu coração sem qualquer tentativa de mentir para si mesmo.

Santo Agostinho com suas “Confissões” faz eco a David. A literatura monástica e mística medievais cultivou este espaço até seu ressurgimento no século 19 no pietismo alemão de gente como J.G. Hamann, o “mago do norte”, ancestral direto do romantismo. Do romantismo e seu epicentro na verdade interior do sujeito, chegamos à psicologia profunda e à psicanálise.

A filosofia hebraica funda regimes de verdade que leva o sujeito a olhar para si mesmo ao invés de olhar para os outros. Em vez de cultivar uma filosofia política, ela cultiva uma filosofia moral da vida interior na qual não é barulho da assembleia que importa, mas o silêncio no qual os demônios desvelam nossa própria face.


Luiz Felipe Pondé (jornal FSP – 15.07.2013)  | Outra fonte para este artigo: AQUI


** ESTE ARTIGO É PROPRIEDADE INTELECTUAL DO AUTOR E DO JORNAL QUE O PUBLICA **

~ por Pathfinder em 17/07/2013.

3 Respostas to “O rosto da adúltera de Jesus (15.07.2013)”

  1. Podeira haver um programa (em rede aberta) especialmente dedicado a exploração da mente do Pondé pois tenho a certeza que o brasileiro se tornaria mais humano e menos hipócrita.

  2. Jesus veio, como Filho de Deus, para cumprir a lei. A lei do amor e do perdão. De modo algum Jesus foi só um cabra macho, como diz Pondé. Ele é o Verbo encarnado. Para os judeus, Jesus é um profeta, e Pondé, como judeu, pode reduzir Jesus à figura do cabra macho, retirando sua divindade. Cabra macho é linguagem de cangaceiro, e Jesus nada tinha disso! Que erro em um homem que se diz professor de Ciências da Religião!

    Ademais, se Cristo apontou para a hipocrisia dos apedrejadores, ele não deixou de apontar para a vida pecaminosa da adúltera, tanto que a mesma se converteu para uma vida casta. Conversão ao cristianismo é outra atitude que Pondé desconhece, pois em todos os seus artigos ele quer nos convencer de que todos os que se dizem fiéis a um bem supremo, são totalitários. Jesus é a Verdade, o Caminho e a Vida.

    Sinto muito, Pondé, Jesus Cristo não queria uma moral para ser vivida interiormente, do contrário, ele não teria enviado seus apóstolos pelo mundo, para levar a boa nova e construir o reino de Deus, que começa aqui e se consuma no Além.

    Pois é, os liberais gostam de confundir a cabeça das pessoas, retirando a divindade de Jesus Cristo, mostrando que Cristo foi um cabra macho, mas eles, os liberais, se esquecem que Agostinho foi precisamente aquele que modelou a cidade de Deus segundo a união da “fé judaico-cristã” com a filosofia grega socrática.

    Nossa miséria intelectual está na miséria de nossos professores de Ciências da Religião, que em nome de seus impulsos liberais, relativistas e avessos à qualquer moral, negam a autoridade das Escrituras só pra fazer bonito no mercado editorial.

    Abraxas

    • Pondé não é católico, nem mesmo cristão, Sr. Antonio. Portanto, para ele, Jesus não é o Verbo encarnado. Essa é uma crença de cristãos, que só pode ser apresentada como “verdade” por cristãos e para cristãos. Se entendemos o termo “cabra macho” apenas como sinônimo de “cangaceiro”, certamente isso soa equivocado para um cristão. Ou até mesmo para quem admira a figura de Jesus de Nazaré sem ser cristão. Acontece que esse não é o único significado do termo. Para um “nordestino”, seja lá o que essa caracterização implique, o termo também significa CORAJOSO. E acredito que era a isso que Pondé se referia. Naquela época, havia que se ter MUITA coragem para se fazer o que Pondé descreve no artigo. E desculpe, não vale aqui apelar para a divindade de Jesus quando quem fala não é alguém que veja Jesus como Deus.

      “Jesus é a verdade, o caminho e a vida” para um cristão unicamente. E se alegar isso como verdade universal e indiscutível para todos, incluindo não cristãos, não é uma espécie de totalitarismo ideológico, então o senhor não sabe muito bem o que significa “totalitarismo”.

      Acredito que se o Deus amado e apresentado à humanidade por Jesus existe, ele aceita todas as Suas criaturas humanas, seja lá como cada um O entende. Antes de tudo, o que Jesus mostrava era o AMOR de Deus por todas as suas criaturas. O totalitarismo não está em acreditar num bem supremo além do humano; está em tentar impor essa crença aos outros. Se alguma vez Pondé dirigiu essa crítica ao cristianismo (o que eu sinceramente duvido, pois nunca li nada parecido em lugar algum), provavelmente era a isso que se referia. Afinal, temos 2000 anos de história da Igreja Católica para comprovar isso. Mas, pelo que me consta, Pondé SEMPRE defende a Igreja Católica quando tem oportunidade.

      Sugiro uma leitura mais aprofundada dos textos de Pondé.

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